Observação: O termo “Medicina de Família e Comunidade” é usado no Brasil para definir uma especialidade médica que tem outro nome no Reino Unido. Lá ela é chamada de General Practice, e o MFC de General Practitoner ou GP. Ambos se referem ao Médico especialista em Atenção Primária. No texto usarei MFC como sinônimo de GP e vice-versa.
INTRODUÇÃO
Ouve-se muito de como nossa especialidade é nova, mas vejam, em 1950 ela já existia. Na verdade, ela precede isso. No Reino Unido, o termo General Practitioner foi usado formalmente em 1844 com a formação do “National Association of General Practitioners in Medicine, Surgery and Midwifery”, com suas raízes indo ainda mais longe no passado, datando de 1617 com a formação da “Society of Apothecaries” na Inglaterra.
Apesar da tradição antiga, até a formação do National Health Institute (NHS) em 1948 (a Europa arrasada pela Segunda Guerra estava embebida pelos valores da solidariedade e equidade), não havia padrão ou mesmo definição clara do que era ser GP. Com isso, cada médico que se autoproclamava assim fazia como pensava ser adequado a sua prática, em um caos, que o autor do artigo que vamos trabalhar apontava como perigoso, no mínimo.
Não dá para pensar que qualquer um ou qualquer coisa serve para ser MFC.
Apesar de 70 anos terem se passado desde a história de como o Dr. Joseph Collings comprou a briga de que a Medicina de Família e Comunidade era uma disciplina a parte, portanto, que necessitava de forma, modelos e objetivos claros; é possível perceber semelhanças com os dias atuais.
A criação do NHS aumentou a demanda (a cobertura passou de 40% para 100% da população) sobre a prática dos GPs, sem nada oferecer em termos de melhoria da formação ou criação de um padrão que definisse a área. Por outro lado, supriu diversas carências que os hospitais e centros especializados necessitavam. Assim, era imperioso que alguém apontasse os equívocos e trouxesse soluções, foi o que o Dr. Collings fez.
O ESTUDO
Ele começou sua petição criticando os generalistas que atuavam na Atenção Primária à Saúde sem nenhuma técnica, em uma anarquia cognitiva que “o que desse na telha” era a prática corrente. Algo que ele apontou ser um perigo para a saúde pública! Ele foi a fundo avaliar esse problema acompanhando “in loco” 55 médicos de família e comunidade, fazendo desde o acompanhamento de consultas (o que notavelmente gerava um comportamento artificial dos avaliados), até atendimentos conjuntos e discussão de casos.
Sua seleção do seleto grupo de médicos foi feita pela comunidade, quando o autor pedia exemplo bons, medianos e ruins.
Ainda fez um esforço para avaliar os pacientes que eram hospitalizados vindos da atenção primária, tentando correlacionar as condições com as condutas do “GP” assistente. Sempre tentando fazer observações gerais de problemas individuais.
As suas principais perguntas que derivaram de suas observações foram: “O que é a MFC hoje? O que MFC’s fazem? Como eles o fazem? Quais critérios temos para avaliar qualidade de assistência? Como os MFC’s integram com outros serviços médicos – hospitais, especialistas focais e prevenção?”.
Curioso que naquela época os General Practitioners já se dividiam de acordo com a área de atuação, sendo elas industrial, rural e urbana (cada uma com sua particularidade)
Os GPs industriais trabalhavam em sobrelojas onde antes funcionavam comércio, ou mesmo nos porões de casas de moradores do local ou ainda em suas próprias residências. Essas sofriam adaptações mínimas e todas tinham espaço físico inadequado, além de deixar escapar som, permitindo a pessoas na sala de espera ouvirem os detalhes mais íntimos de uma consulta. (alguém reconhece alguma semelhança com nossa realidade atual?)
As condições dos GP’s industriais eram tão ruins que o autor reflete:
“Poucos artesãos qualificados, sejam eles encanadores, açougueiros, motores ou mecânicos, estariam preparados para trabalhar em condições com equipamentos tão ruins (comparavelmente) quanto os tolerados por muitos médicos que trabalham em práticas industriais.” (Collings, 1950)
As denúncias do autor eram tão atuais que me peguei por diversas vezes checando a data do artigo para ter certeza de que não se tratava de artigo recente.
No entanto, havia falhas apontadas também dos médicos, especialmente a não realização do exame físico. Uma combinação de fatores justificava isso, um deles sendo a ocupação da maca do exame com caixas e documentos (as que tinham caixas com documentos ou garrafas sobre a superfície denunciavam o pouco uso, especialmente as com revistas que datavam o tempo passado)
“e apesar de que muitos pacientes vinham com histórias e apresentações de sintomas que indicavam a necessidade da realização de um exame físico detalhado, eles deixavam o consultório sem nenhuma tentativa para tal ou mesmo acordo de realizar o procedimento em encontros futuros” (Collings, 1950)
Em consequência disso, alguns pacientes eram encaminhados para os hospitais ou ambulatórios apelas pela história clínica, sendo que o exame físico bastaria para trazer respostas e condutas cabíveis à atenção primária.
Ainda, quando ele era feito, algumas vezes era feito de forma imprecisa, seja com exames de tórax feitos às pressas sem descobrir a área examinada ou avaliações do abdome com palpação realizada com o paciente em pé.
Contudo, o autor conclui que o ambiente de trabalho da realidade industrial era tão limitante que a capacidade individual de cada médico pouco contava. Algumas soluções propostas: melhoria das instalações, melhores equipamentos, coordenação mais profissional e auxílio de assistentes administrativos. (algo pertinente ainda hoje para grande parte dos cenários de APS do Brasil)
Essas circunstâncias afetavam o perfil de médicos que se propunham a aventura-se nesses cenários, o autor, ludicamente, os separa em “mercenários” e “missionários”. Os últimos são indivíduos de caráter admirável, sinceridade, motivados a “fazer o bem”, com qualificação médica. Já os primeiros, não se adequavam ao padrão que o autor considera desejável. Apesar disso, segundo o autor, o “mercenário” costumavam ter capacidades de “diagnóstico rápido” que o “missionário” não possuía, tornado o primeiro mais adequado a prática industrial (alta demanda de pacientes).
O ponto central é que, ainda que evidentemente inadequada, a prática médica nessas áreas industriais era aceitável para médicos e pacientes de toda forma. Mesmo estando longe do que a ciência da época podia oferecer, essa prática recebia o rótulo de “medicina de família”.
PRÁTICA RURAL
A antítese da prática industrial em muitos aspectos. Fosse nas “cirurgias” (nome que os britânicos dão as clínicas) com melhores condições e mais bem equipadas, ou mesmo na melhor integralidade da rede, onde as clínicas se associavam aos hospitais locais quase como uma unidade. O Médico de Família Rural também necessitava de ser mais versado em uso de tecnologias para aumentar sua resolutividade, uma vez que a distância para a cidade representava um problema. Talvez a principal diferença fosse o maior tempo em cada encontro, possível devido a menor demanda.
Ainda havia os MFCs que atuavam em áreas urbanas que mesclavam pontos da prática industrial com a rural, seja os bons ou os ruins.
O intuito do trabalho de Joseph Collings foi avaliar o estado da prática em atenção primária a saúde do reino unido pós implementação do NHS, usando critérios para avaliar a qualidade do médico (avaliação qualitativa pela comunidade), condições estruturais (atestadas por ele in loco), a frequência que o exame físico era realizado entre outros.
RESUMO
O autor concluiu que as condições da “Prática do GP” eram ruins e em piora. A deterioração insinuava continuar até que se definisse melhor as funções do GP e se criasse um padrão para a especialidade. Além de que, passos fossem tomados para que esse padrão pudesse ser atingido e mantido.
Sua inquietação com o problema inspirou, em 1952, a formação do “Royal College of General Practitionerd (RCGP)”, que colocou os médicos de família do reino unido na frente da responsabilidade por todo cuidado médico inicial (ou único) das pessoas. Esse movimento também iniciou a padronização do que era ser um MFC.
A base da motivação do Dr. Collings é muito similar com nossa situação atual, especialmente a pública, o que pode ser animador. Se foi possível modificar essa realidade distante, é possível, agora, alcançarmos o patamar necessário para nossa especialidade. Uma prática especializada com estrutura e recursos hábeis para sermos os Médicos das pessoas, seus guardiões e cuidadores, independente de queixa, gênero, demanda ou origem. Ser Médico de Família e Comunidade é diferente, isso precisa ser reconhecido, e mais, ele é o profissional mais adequado para atuar na APS portanto - merece distinções particulares.
Felizmente temos visto um crescimento na qualidade dos serviços de APS no Brasil, entendendo o papel central do Médico de Família e Comunidade. Isso ocorre especialmente na realidade de grandes centros ou locais em que há gestão comprometida ou empresas que estão bancando a especialidade (sozinhas ou em parcerias com o poder público). O custo de não primarmos pela qualidade, por não chegarmos a um consenso de um padrão e como executá-lo/ mantê-lo é repetir os erros do passado, apenas ecoando o que já tivemos de pior.
Autor: Victor Kelles Tupy da Fonseca
Artigo base: Joseph S. Collings. General practice in England today: a reconnaissance. The Lancet, 1950; i: 555–85. Encontrado em “Michael Kidd, Iona Heath, Amanda
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