
A figura do Médico é algo que permeia nosso imaginário desde a infância, ou seja, as nossas primeiras memórias. Seja pela experiência de frequentar a Unidade Básica de Saúde da Família para vacinações e acompanhamento, ou mesmo quando um resfriado nos colocava mais abatidos que o usual. Qual seria a essência dessa figura? Que conjunto de características marcam a metáfora cultural do “ser médico”?
Essa questão é abordada por nada menos do que Sir Arthur Conan Doyle. Autor famoso por ter criado a personagem Sherlock Holmes, um detetive com olhar sempre atento aos detalhes, com raciocínio integrado e capacidade de dedução quase mágica. Sir Conan Doyle era médico e é dito que ele se inspirou em um de seus professores, Joseph Bell, para criar a personagem do detetive inglês. Pelas suas habilidades diagnósticas, o Sr. Bell inspirou o famoso detetive britânico, mas não foi ao professor que o autor recorria quando estava doente.
A Dra Anna Stavdal (MFC que trabalha na mesma área no centro de Oslo há 27 anos) resgata o texto do grande escritor: “Atrás do Tempo”, um relato formidável de como é ser cuidado por um Médico de Família. Em seu artigo, “Humanismo Médico e nossos valores como Médicos de Família e Comunidade”, Dra Anna nos traz a visão em primeira pessoa da experiência de Sir Arthur Conan Doyle com a Medicina de Família e Comunidade, e como a longitudinalidade deve ser vivida e conduzida por um MFC leal, no caso, o seu próprio.
Dr James Winter era o MFC do protagonista, descrito como: “um homem com corpo de ganso, cabelos felpudos, pernas tortas com os pés virados para dentro”. A relação dos dois começou quando o paciente ainda era criança, pequeno o suficiente para ser carregado pelos dois braços pelo Dr. James, mas não novo demais para começar a criar o imaginário do que significa cuidado.
E muitos foram os encontros dos dois, seja para vacinação, drenar um abcesso ou cuidados com a caxumba. E quanto pior era a moléstia, mas gentil e oportuno se tornava seu médico.
Mesmo quando na escola de Medicina, após os anos terem passado para Arthur, Dr Winter era o mesmo, ainda que com fios brancos no cabelo e uma curvatura mais acentuada dos ombros. “Quando sorria, suas rugas abriam-se como vidro temperado se quebrando, denunciando de forma mais franca a passagem do tempo.”
Ainda que um sobrevivente, havia nele relutância em aprender os avanços médico que vieram com os anos, como o advento do clorofórmio. Chegava até a maldizer Laennec (o inventor do estetoscópio), como se sua inovação fosse mero brinquedo da moda.
Isso não quer dizer que ele era pouco estudioso, pois lia semanalmente seu jornal médico habitual para se manter minimamente ciente dos avanços da ciência moderna, mesmo que as criticasse como sendo um grande experimento delirante. Não escaparam da sua verve a “teoria dos germes” nem os postulados de Darwin.
O seu atraso era tamanho que quando as coisas, ocasionalmente, percorriam seu ciclo usual, ele se encontrava na vanguarda.
Era exímio no exame físico, sua técnica palpatória com as mãos era como se cada dedo tivesse um olho que enxergasse além. Não somente, ele tinha o toque que cura, aquele ar magnético que desafia a explicação ou análise, mas que se impõe de forma inescapável. Sua mera presença deixava os pacientes mais esperançosos e cheios de vida.
Ele era capaz de tocar a morte de um quarto como se ela fosse uma galinha perdida, mas quando essa se recusava a sair, e o sangue começava a se mover lentamente e os olhos a se apagarem, era quando Dr. Winter era de mais valia que todas as medicações na sua prática.
Pacientes em processo de morrer agarravam suas mãos, como se elas os dessem mais coragem de encarar a mudança; e aquele gentil semblante, castigado pelo vento, foi a última figura terrena que muitos em sofrimento carregaram para o desconhecido.
Nos limites da vida, não é a ciência que mais importa, é a presença – o genuíno interesse, o estar ao lado.
Ainda que a juventude médica desse soberba a Sir Arthur e seu Colega Dr Patterson, críticos de certas faltas do Dr. Winter, quando ambos adoeceram gravemente foram ao velho médico que eles recorreram. Nos nossos momentos derradeiros, o avanço tecnológico se empalidece, e o cuidado leal permanece, é ele que levamos conosco para o fim, é dele que nossos entes queridos se lembrarão
Essa história ilustra uma das raízes do “ser médico de família e comunidade”. Essa essência, é o contrato implícito entre médico-paciente que diz: “Eu estarei lá quando você precisar de mim. Eu farei o meu melhor para te entender, no seu contexto particular, oferecendo cura se eu puder, tentando aliviar sua dor, e sempre lhe fornecendo amparo, e farei tudo ao meu alcance para nunca lhe expor a qualquer mau. E saiba, seus segredos estão seguros comigo”
Então, é perceptível que grande parte do que é esperado de nós como Médicos de Família e Comunidade é nossa presença ao longo do tempo. Evidentemente, essa encontra desafios tremendos, seja por processos de trabalho que nos queima lentamente, por decisões de gestão que ignorando o vínculo e nos reduzem a engrenagens, até mesmo pacientes desafiadores que testam nosso brio. Contudo, a recompensa por sustentar a premissa da longitudinalidade, a satisfação pessoal e os ganhos internos são encantadores.
A nossa realidade testa esse compromisso cotidianamente, sei disso. Afinal, é difícil até sermos reconhecidos como especialistas, quanto mais demonstrar que temos uma forma especial de ser diferente. Mas o tempo tende a favorecer a constância, seja no interior do estado, em seu consultório privado ou em uma UBSF. Dado o número certo de invernos, a continuidade dos encontros interpessoais com nossos pacientes será um de nossos maiores tesouros.
Para levar para casa:
Longitudinalidade é presença.
A presença inspira esperança e vigor.
Sabedoria é atacar a dor com gentileza.
Acompanhar, quaisquer que sejam as circunstâncias.
Estar atualizado, ainda que crítico às novidades.
Mais vale um Médico ao seu lado do que um médico que sabe tudo.
Estar para o paciente quando ele precisar.
Texto por:
Prof. Victor Kelles Tupy da Fonseca
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